terça-feira, 16 de dezembro de 2014

O corpo é meu e não de quem quiser!

Queria que todas as mulheres negras ou não lessem esse texto.

Hoje a noite recebi um inbox no facebook da Melissa Caroline. Mulher jovem e negra. Moradora aqui do Cantinho do Céu, na Zona Sul de São Paulo.

Na conversa a Melissa me pediu que eu publicasse uma situação absurda que aconteceu com ela enquanto voltava do trabalho para casa dentro do ônibus.

"Laura, conheço seu trabalho, sei que tem um blog, conheço os assuntos e queria pudesse compartilhar uma triste e vergonha e caso lhe seja de interesse quero pedir que publique isto, pois embora, seja algo que me traumatizou, peço opiniões e ajuda pois minha mente está revirada de pensamentos...
Bom eu sou uma mulher negra, e todos os dias acordo 4:20 da manhã para ir trabalhar, e meu trabalho é algo pesado mais não reclamo pois me sinto igual a todos no meu serviço, sou tratada como mulher e homem, e isto me deixa realmente exausta, e nesta terça feira como de costume, peguei o ônibus de destino cantinho do céu, para a minha casa, e como estava extremamente exausta, dormi no banco do ônibus, ao estar chegando perto de meu bairro, acordo e reparo que um homem estava com a mão dentro da minha blusa, e assim que vejo isso, levei um susto, não tive reação, comecei a chorar dentro do ônibus, pois algumas pessoas viram e ignoraram o fato, me senti abusada, me senti usada, mas também senti um ódio profundo, e decidi descer ao mesmo ponto que ele e fazer algo, claro que com a raiva que estava não me segurei, e o ataquei no meu da rua, bati, e ofendi aquele homem, embora não conhecesse aquele homem me senti ferida, com todo aquele ódio em cima de mim, me sentia abusada por alguém que se quer conhecia, ou tinha qualquer relação, e mesmo cometendo este ato que não era a melhor opção, agredi aquele homem, mas fui separada por homens que me seguraram e defenderam o cara que cometeu está atrocidade, pois ele estava fingindo estar bêbado e fugiu, e até agora me sinto abusada, e não sei como tratar essa situação."

Quantas mulheres que estão lendo esse texto já passaram por esse tipo de situação algum dia de nossas vidas?
Ja ficou natural que a gente se veja, lembre, reviva uma situação de abuso e invasão dos nossos corpos. Isso ja ficou tão naturalizado, que não aceitar isso, gritar, bater, ou apenas questionar o abuso estamos sofrendo  é que se torna escandaloso. 

Desde pequenas ensinas a aceitar que nossos corpos podem ser invadidos, e que isso  vai acontecer se a gente deixar. E se acontecer a culpa é nossa, e  nossa!

O corpo das mulheres negras sempre foi hiper sexualizado. Somos vistas apenas como objetos, como coisas exóticas, prontas para serem estudas, tocadas, prontas para saciar o desejo dos homens. Mulheres negras são as que mais sofrem violência sexual e agressão física. Mulheres negras são as que mais carregam traumas psicológicos por isso. 
Somos tratadas como coisas. Coisas. Não somos coisas!

O que passa na cabeça de um homem para por a mão dentro da nossa blusa e invadir o nosso corpo, como se fossemos apenas objetos de loja?

Nos estamos sujeitas a esse tipo de violência cotidianamente, nas ruas, no nosso trabalho ou mesmo no transporte. Perdi as contas de quantas amigas que pensam até  em pedir demissão pois não aguentam mais o assedio diário que sofrem no trabalho. Que não aguentam mais o assedio dos colegas de sala de aula...

Podem pensar que esse texto é mais um texto de uma feminista que gosta de gritar e dizer que seu corpo não e objeto.

Eu queria que todos os homens lessem esse texto também.
Quero que vocês entendam que quando falamos sobre feminismo, sobre o corpo da mulher, não pode ser um debate formal.
Sinto que grande parte dos homens que dizem se indignar com estupros, assédios e mais um tanto de imundícies que rodeiam a vida das mulheres, na maioria das vezes levam essa discussão de maneira formal, e uma hora ou outra acabam entrando para a lista de escrotos que infelizmente passam por nossas vidas deixando marcas.

Queremos que vocês entendam que quando nos beijam ou nos tocam sem nosso consentimento, vocês nos matam um pouco mais! Voces nos invadem!

Não temos mais sequer o direito de ficar cansadas, de tirar  5 minutos de sono, pois nos vemos obrigadas a estarmos ligadas incessantemente, sem parar, para garantir que não seremos invadidas ou abusadas. E quando ousamos revidar, somos impedidas, somos ridicularizadas, somos culpabilizadas. Não deveria ser assim! O nosso corpo não e um objeto!

A culpa não é nossa! A culpa não é sua mulher!
Nosso corpo não esta em uma bandeja, não esta em uma prateleira para ser visto, tocado ou analisado como um objeto! Não somos coisas!
Nosso corpo é nosso! E quem deve decidir quando ele pode ser tocado somos nos! Ninguem tem o direito de nos invadir, de nos agredir!

Expor uma situação não é fácil para nenhuma mulher, e expor algo como isso passa por uma situação tão desesperadora, que as vezes a unica saída que temos é de publicizar e assim dar o nosso grito de jeito que ele possa ser ouvido em outros lugares, talvez que ele seja ouvido no mundo.

O corpo  é  nosso! Chega de violência








quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

A quem serve o machismo no movimento negro?

Eu não compactuo com esse jogo sujo
Grito mais alto ainda e denuncio esse mundo imundo
A minha voz transcende a minha envergadura
Conhece a carne fraca? eu sou do tipo carne dura!
(Ellen Oléria)

Eu sou militante do PSTU, do Quilombo Raça e Classe e também sou do DCE da USP. 
Construo essas organizações por acreditar nos seus programas e disputo internamente dentro dessas organizações a questão racial, pois acredito que só com um programa socialista a população negra será liberta. 

Ser mulher negra em qualquer lugar é muito difícil. Seja no movimento feminista, por na maioria das vezes invisibilizarem as especificidades que nós mulheres negras temos. Infelizmente no movimento negro também não é muito diferente, diferente do movimento feminista, o que nos atinge no movimento negro é o machismo, e esse machismo vem de homens negros, que deveriam nos fortalecer e entender o quanto para nós é difícil, muitas vezes tentam nos silenciar, são machistas, e vindo destes companheiros isso dói mais!

Eu tô escrevendo esse texto porque passei por uma situação de machismo no movimento negro há alguns dias. 

Não só de machismo, mas também de questionamento da minha negritude. 

Quando uma mulher negra toma frente de alguma atividade, de algum ato, de qualquer coisa, por menor que seja, ela está ultrapassando a opressão, está ocupando um lugar que durante toda a nossa historia, nos foi negado, e sempre ouvimos que nós deveríamos estar lá. Então, quando uma mulher negra sai do lugar onde historicamente foi colocada, é uma vitória! 

A derrota se dá quando tentam nos dizer que lá não é o nosso lugar, a derrota de maneira mais horrível quando é um militante do movimento negro que diz isso! 

Isso aconteceu comigo em uma atividade que encaminhou o I Seminário de Negros e Negras da USP. Quando um companheiro do Coletivo Negro da USP Capital, me disse que não era legitimo que eu encaminhasse partir de uma atividade construída pelo DCE o Seminário, porque eu era militante do PSTU e do DCE, logo não era negra o suficiente para isso, e estaria servindo apenas de porta voz das organizações. 

Eu insisti em encaminhar e mostrei meu desacordo, visto que o coletivo de São Paulo era o único a ter desacordo. O NCN-SP tinha acordo e Coletivo Negro USP Ribeirão Preto também tinham acordo. 

Durante a mesa, um dos companheiros do Coletivo, saiu de seu lugar no plenário e veio até onde eu estava (eu estava mediando a mesa) e disse: muito cuidado com o que você vai encaminhar aqui. você está começando mal o movimento negro na usp. 

Eu disse: vou encaminhar! 

Fui intimidada durante toda a atividade, com olhares intimidadores dos companheiros do coletivo. 
Todos os convidados da mesa sentiram o quanto eu estava insegura e angustiada com aquela atividade. 
Ao final, chorei muito, mas encaminhei o seminário.

Pergunto: Apesar de termos encaminhado um fórum importante como esse, em uma universidade racista como é a USP, é sim uma grande vitória, mas a tentativa de intimidação e ameaça por parte de um companheiro negro e militante do movimento, a uma mulher negra, fortalece a quem? 

Nós, mulheres negras, quando tomamos frente de algo, ultrapassamos milhares de barreiras, e não podemos ser paradas pelo machismo que é latente dentro do movimento negro. 

Por ser mulher, os espaços políticos, são negados à nós! E os companheiros sabem disso,
Por ser negra, isso se torna ainda pior em todos os sentidos! 

O movimento negro é hegemonicamente masculino, apesar de existirem mulheres que tomam frente de espaços, ainda somos poucas. Quando avançamos não pode ser que companheiros que deveriam estar do nosso lado na luta, tentem nos calar ou invisibilizar, ou dizer que somos menos negras por construirmos organizações das quais estes tenham desacordo. 

Tenho certeza absoluta que este tipo de situação não aconteceu só comigo, mas que acontece com muitas mulheres negras, na verdade práticas como essa são bem comuns no movimento negro, e precisam ser combatidas e educadas!

Combater e denunciar o machismo em momento algum pode ser visto como uma maneira de dividir o movimento negro. O que divide o movimento é o machismo! O que divide o movimento é deslegitimar a negritude de alguém, e desconsiderar toda a luta que passamos para nos declaramos e nos entendermos como o tal. É isso que divide o movimento!

É intolerável que atitudes como essa sejam naturalizadas, ou que por bancarmos essa discussão sejamos vistas como inimigas. É ainda mais vitorioso quando uma companheira negra banca fazer essa disputa dentro do movimento.

Quando uma preta abre a boca, ela mais uma vez levanta sua cabeça da senzala e parte para a luta, assim como Dandara fazia em Palmares. 

Somos mulheres negras, sujeitas de nossa história e luta! A libertação e o avanço de uma mulher negra é também do movimento negro e do povo negro de conjunto! 

A minha voz, transcende a minha envergadura. Conhece a carne fraca? Eu sou do tipo carne dura!

Chega de machismo no movimento negro! 
Quando uma mulher negra avança, nenhum homem retrocede! 

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Quando se é uma criança negra - A importancia de enegrecer a infância.

 

 Menina pretinha
Você não é bonitinha 
Você é uma rainha! (MC Soffia- Menina Pretinha)

Nos últimos dias eu tenho feito mesas em algumas escolas. Saí do ambiente universitário e comecei a ter um contato mais forte com as crianças do ensino básico e médio.
Bem, tem sido uma experiência muito boa, incrível, para falar a verdade, mas olhem, falar sobre racismo com os pequenos é algo fácil e difícil, prazerosa mas também um tanto quanto delicada.
Tenho ido em escolas públicas de periferias, conversando com alunos de 10 a 16 anos e com os professores também. A cada dia tenho visto a necessidade de sair do âmbito universitário e estar mais próxima dos pretinhos e pretinhas pequenas.

Mas não é sobre isso que eu vim aqui escrever hoje. Quer dizer, é mais não é, porque quero escrever sobre minhas experiências nas escolas um outro dia.

Toquei neste assunto das escolas, porque vi muitos rostinhos pretos, de meninas pretas, muitos cabelos alisados visivelmente por conta do padrão de beleza imposto para todas as mulheres desde pequenas. Cabelo liso, escorrido, arrumado!
Que pese que alisar o cabelo não faz de nenhuma de nós menos negras ou militantes da luta contra o racismo, mas, que pese também que somos nós, as mulheres negras, a maioria das que aplicam produtos químicos nos cabelos ainda pequenas e que as razões pelas quais fazemos isso são as mais violentas.

Durante muito tempo eu alisei meu cabelo, alisei desde os 12 anos. Alisava porque assim enfim eu me sentia "aceita" e bonita.
Já falei aqui sobre todos os desafios que encontrei pelo caminho quando decidi por deixar que meu cabelo ficasse natural. O crespo que acho pelo e que tanto me orgulho de carregar na cabeça do seu jeito descabelado, vivo e lindo.

Minha familia é toda de militantes do movimento negro, então, fui criada sabendo que eu era negra, sabendo que o racismo existia, que ele era uma coisa muito muito muito ruim, cresci também sendo constantemente  sendo incentivada a fazer tranças afro nos cabelos. Isso me ajudou bastante na compreensão sobre o que é o racismo e também no que sou.
Crescer em meio a uma familia militante não me blindou de absover as idéias de que o liso, o branco, o europeu, eram mais bonitos.
Então, quando eu tinha 7 anos tudo o que eu mais queria era alisar meu cabelo, e esse pedido era feito constantemente ao meu pai, porque me sentia tão feia, tão inferior com todos aquele cabelo "ruim, duro, chuchu, que não molhava, que não entrava creme" como eu tanto ouvia e por isso, minha alto estima era baixissima, e ainda hoje as vozes que me chamavam não só disso, mas de magrela, nariguda, ecoam na minha cabeça fazendo com que eu me sinta a pior das mulheres.

Aos 12 anos então, enfim alisei o cabelo, e de imediato, quando eu cheguei na escola todos elogiavam o quanto meu cabelo estava bonito, até o menino pelo qual eu era apaixonadinha começou a dar mais importancia ao que eu falava e foi aí que pela primeira vez eu me senti realmente bonita.

E assim, eu segui até os 14 anos, quando um dia me olhei no espelho e não gostei do que vi e questionei pela primeira vez aqueles fios alisados, aí eu coloquei trancinhas. As tranças também me deixavam bonitinha, arrumadinha, escondiam os fios crespos. Mas depois de algum tempo, eu via as alisadas ao meu redor, e me via meio estranha com aqueles cabelos que nem eram meus. Voltei a alisar.
Dos 16 aos 18 anos eu mantive meu cabelo devidamente alisado na escova progressiva, até que comecei a militar, e voltei a colocar as tranças, só dois anos depois, deixei o black.

Mas todo esse processo de me negar mesmo sendo rodeada de pessoas que me amavam me incentivando a ser preta, me ensinando qual era o significado de deixar meus cabelos, de conhecer as guerreiras negras, eu não fui educada sem saber o que era o racismo. Eu sabia, eu viva ele, e isso doía, doía muito!
Doía, porque pela minha familia eu era amada do jeito que eu era, magrinha, narigudinha, descabelada. Mas para fora, para os amigos, parentes distantes, professores, amiguinhos de colegio, eu era estranha e assim eu me sentia uma coisa, e ninguém quer ser coisa, a gente quer ser gente! Essa foi a principal razão de eu me negar durante tanto tempo.

Nessas mesas que eu tenho feito pelas escolas das periferias de São Paulo, eu vejo muito de mim em todas aquelas menininhas alisadas, que só querem ser gente, que querem ser aceitas ou que como eu, querem se sentir bonitas, porque as vozes que as chamaram de feias seguem ecoando em suas cabeças e aquela dor volta e nos violenta de novo.

A diferença entre mim e essas meninas é que eu tive mulheres pretas e um pai que não conseguiram me blindar da soma do machismo e racismo, mas que plantaram algo que fez toda a diferença dentro de mim. Me ensinaram o que eu era e quanto eu era linda, independente do que me falassem. Meu pai me chamava de Pérola Negra, de pretinha, minha madrasta me dava livros de meninas pretas, de princesas negras, minha mãe me ensinava musicas africanas, me contava histórias da minha bisavó quilombola, Chica Salazar, mãe de santo do maior terreiro do Bom Jesus no Maranhão. Aquelas vozes que até hoje teimam em ecoar na minha cabeça hoje, tem menos força por conta das palavras de lindeza e amor que desarregaram em mim na minha infancia. Infelizmente, não sei se aquelas pretinhas também tem isso.

Vamos encher nossas crianças pretas de negritude, de orgulho da negritude, vamos plantar uma sementinha que certamente, assim como em mim germinou, germinará em nossos pequenos.
Eu não consigo abraçar todas as meninas pretas e dizer o quanto cada uma delas é linda e o quanto merecem ser felizes e livres.

O resultado de todos esses debates que tenho feito e que tenho tentado colocar dentro de cada palavra o que é o racismo, foi o desenho da Cinderela negra da aluna Thayná Silva, da EMEF Carolina Renô no Emi Boi Mirim e eu vou colocar esse desenho aqui, porque me deu muita certeza que um dia os cachos das meninas com quem eu consegui falar também serão livres e que agora, quem sabe, elas se sentem mais bonitas, mais princesas!
 
 


quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Porque levantamos nossas cabeças das senzalas?

As vezes é muito importante lembrar da nossa história, do nosso passado, de tudo o que vivemos até hoje. Fazer uma retrospectiva de tudo que já enfrentamos até hoje, principalmente quando estamos achando que tudo o que está acontecendo nas nossas vidas é tão ruim que se vir mais uma pancada não vamos conseguir segurar a onda nos faz por os pés no chão e dizer: acho que isso é moleza de passar perto de tudo que já passei.


Eu passei um bom tempo sem escrever pra cá né? Acho que preciso me justificar. Recebi muitos e-mails lindos e carinhosos super  apoiando a iniciativa do blog e dos textos. Isso foi motivo de muita alegria! Obrigada e me perdoem por ter demorado tanto para escrever. Eu fiquei sem internet e computador, e sinceramente, eu quero escrever aqui quando eu estiver sentindo o momento, quando eu estiver muito alegre, ou nem tão alegre assim e quando for um tema de muita polemica e ai eu ter a oportunidade de colocar meu ponto de vista. Não quero que se torne uma obrigação estar sempre escrevendo... acho que fica pouco sincero e quero escrever coisas de maneira que quando eu termine o texto me sinta mais fortalecida, e de maneira que quando vocês terminem de ler o texto também se sintam mais fortalecidas.


Hoje eu acho que é um bom dia pra escrever, porque ontem a noite eu fiz uma retrospectiva da minha vida e lembrei de muitas coisas que já me aconteceram. Eu estava um tanto quanto cabisbaixa de algumas semanas pra cá, aí lembrando de tudo que já passei nessa vida me senti muito forte e vi eu consigo passar por mais essa sim.


Mas eu lembrei principalmente de que tudo que eu já passei é a realidade que as mulheres negras passam ainda hoje.


Ontem eu lembrei do ano de 2006, que ano difícil foi aquele! Eu tinha 12 anos, tinha acabado de vir do Maranhão pra morar com minha mãe aqui em São Paulo. Nós morávamos no Cantinho do Céu, no extremo sul de São Paulo. Morávamos perto da represa... muito muito perto. Em uma casa que era tipo um cortiço, varias casas dentro da casa, sabe? E eram dois cômodos e um banheiro. Morávamos, eu, minhas duas irmãs menores, minha mãe e meu ex padrasto. E detalhe, esses dois cômodos eram no porão da casa. Como era fria aquela casa! E as paredes eram cheias mofo... eu e minhas irmãs sofremos até hoje cheias de problemas respiratórios, reflexo de tanta umidade que respiramos naquelas moradias precárias pelas quais passamos.

Em 2007 eu voltei para o Maranhão, voltei a morar com meu pai e minha madrasta. Em 2009 eu voltei pra São Paulo. Acho que de 2009 à 2011, foram os anos que me tornaram a mulher que sou hoje.
Em 2009 meu ex padrasto se separou da minha mãe. Ele foi embora para o Maranhão com e deixou meio quilo de arroz e dois rolos de papel higiênico, deixou uma mulher negra pagando a faculdade, recebendo 930 reais, com meninas pequenas em casa, aluguel, alimentação, água e luz...
Lembrei que durante uns dias do mês de agosto, só tínhamos feijão pra comer, feijão no almoço e feijão no jantar, sem arroz pra acompanhar, sabe?... E de café nós fazíamos bolinho de trigo, que era trigo, açúcar e água...
Um dia, antes de ir para a escola, eu coloquei o feijão no meu prato pra almoçar e coloquei só uma colher na boca, porque sinceramente, eu não aguentava mais comer aquilo todos os dias.
A comida da escola era tão ruim, tinha uma cara tão ruim, mas naquele dia eu fui para a escola e comi tão feliz aquela comida... lembro que naquele dia o lanche era macarrão com sardinha... que cara ruim que tinha aquela comida! Mas eu comi tão feliz!


E ontem eu lembrei disso conversando com alguns amigos durante uma atividade que fizemos aqui no Grajaú.
Foi impossível não pensar que essa realidade que na minha vida foi só durante um tempo, é a realidade da vida de tantas mulheres negras que tem 3 filhos e filhas nas periferias do Brasil.
Essas mulheres que sustentam suas famílias sozinhas, que só tem o feijão pra almoçar e bolo de trigo, açúcar e água durante toda suas vidas.
Quantas Lauras, Marlas e Mairas, dependem da alimentação escolar, por nas suas casas mesmo não tem nada pra comer. Aquela comida da escola que era pouquíssimo apetitosa é na maioria das vezes a alimentação do dia da juventude negra que está nas escolas.


Lembrei também que eram só três tias no refeitório, e essas tias, também negras, eram responsáveis por fazer alimentação pra quase mil alunos por período. Como fazer uma comida com boa aparência estando exausta depois de ter feito comida pra mais mil pessoas do período da manhã? Como não ficar cansada depois de ter feito comida pra o turno da manhã e tarde e ainda ter que fazer comida para o período da noite? São 3 mil pessoas pra alimentar todos os dias... São três mulheres negras responsáveis por fazer alimentação para essas 3 mil pessoas.
E o governo ainda diz que tem investido na educação... Salas de aula lotadas, 53 à 59 alunos por sala e apenas 1 professor. Três pessoas para cozinhar para três mil pessoas.


Essa é nossa realidade! Essa é a realidade das mulheres negras aqui do Grajaú, do Cocaia, do Cantinho do Céu, Jardim Eliana, Itaquera,  Pavão Pavãozinho no Rio, Cidade Olímpica no Maranhão, das periferias de Alagoas, da Bahia, de Recife... do Brasil inteiro.


Essa realidade que tenta nos brutalizar todos os dias, que brutaliza nossos filhos e filhas. Realidade que perdura desde a escravidão, que nos tira o alimento, que nos põe pra morar num porão com dois cômodos. Essa é a realidade de nós pretxs que dependemos da educação caótica, do governo que nos nega investimento na educação, essa realidade que nos violenta com 0,26 centavos por mulher.
Ainda diante de tudo isso, essa violência que sofremos nos dá tanta força pra lutar. Nos causa tanta indignação, que coisas pequenas do nosso cotidiano que podem abalar quem teve uma vida de dondoca não nos abala, para nos abalar precisa ser maior. O que nos abala é ver nossos filhos sem ter o que comer, o que nos abala é o salário de miséria,  são nossos filhos sendo mortos pela bala da policia.


Nós mulheres negras, somos nascidas e criadas, enraizadas na resistência! Levantamos nossas cabeças das senzalas que tentam nos impor e partimos para a luta como sempre levantamos e quando lembramos das nossas vidas, de tudo o que já passamos, a ideia de que estamos fracas sempre cairá por terra, e da nossa historia, das nossas marcas a força sempre brotará.

sábado, 12 de julho de 2014

Vagão exclusivo para mulheres: uma medida necessária, principalmente para nós pretas!

Na última semana uma grande polemica explodiu no meio dos setores feministas. A criação de um vagão exclusivo para mulheres nos metrôs e trens de São Paulo foi aprovado pelos deputados e agora segue para a aprovação ou veto do governador Geraldo Alckimin.

Eu enquanto mulher preta, estudante e moradora do Grajaú que fica no extremo sul de São Paulo, que passo no minimo 2h dentro de um trem e metrô diariamente, me senti na obrigação de dar uma contribuição para o debate, além de também mostrar a minha opinião sobre o projeto que atinge diretamente a vida de nós mulheres que utilizamos o transporte público.

Primeiro acho importante ressaltar que o projeto tem inúmeras insuficiências, desde a super lotação que certamente vai acontecer nos horários de pico, até o problema de a maioria das mulheres continuarem usando os vagões comuns e assim continuarem sofrendo assédios, e que percorre também para as trans que podem ser barradas de usar o vagão e muitos outros problemas, que eu poderia colocar aqui e tomar todos os parágrafos desse texto.

Ainda diante de todos esses inúmeros problemas acredito que o vagão exclusivo seja uma medida muito importante no combate ao assédio que sofremos no cotidiano dentro do transporte lotado, é uma medida desesperada diante do que todas passamos. Na minha opinião é uma medida de proteção para as mulheres trabalhadoras.

Mas existem muitas divergências dentro do movimento feminista, muitos questionamentos.
Existem diversos grupos que acham que o vagão é segregacionista, culpabilizador da vitima e ainda há aqueles que comparam o vagão ao apartheid.

Pois bem, vamos ao debate! (por mais duro e polemico que ele venha a ser.)

É verdade que os vagões não resolvem o problema do machismo, é verdade que é muito ruim que nós mulheres, tenhamos que nos ver obrigadas a deixar de frequentar os vagões mistos para que assim deixemos de ser violentadas, assediadas, estupradas dentro dos trens, mas é verdade também que o estupro, o assédio e a violência são coisas que quando acontecem marcam nossa vida da maneira mais destruidora possível.  Nos sentimos culpadas, nos sentimos sujas e pior que isso, nos sentimos impotentes.

As principais vitimas da violência machista são as negras. A violência que nos rodeia desde a escravidão também nos rodeia nos nossos bairros, nas nossas casas e nos transporte.
Esse é um primeiro ponto e que considero um dos mais essenciais nessa discussão. Afinal, quem são as mulheres que utilizam o transporte? São as mulheres negras e trabalhadoras!
São essas as mulheres que levantam cedo, pegam um trem lotado aqui no Grajaú e descem em Pinheiros, em Osasco, em tantas estações... São essas as mulheres que passam 1, 2, 3h dentro de um vagão sendo assediadas, violentadas durante todo esse tempo e não sabem o que fazer. São essas as mulheres que durante toda a vida são ensinadas a se calar diante da violência e que ficam na maioria das vezes caladas diante do esperma na perna dentro do vagão lotado.
É necessário mais uma vez chamar a atenção para as especifidades de nós mulheres pretas, periféricas. Para nós mulheres como um todo que utilizamos o transporte publico e que estamos totalmente sujeitas a sofrer com toda essa brutalidade.

Conversei com minha mãe essa semana e perguntei o que ela acha do vagão. Ela é Enfermeira no Hospital Geral de Carapicuíba e pega o trem todo dia as 5h da manhã, trem lotado que sai aqui da Estação Grajaú. Ela me disse o seguinte: "bom, suficiente não é. mas pelo menos estaremos protegidas né?! Os caras não querem nem deixar a gente entrar no trem e quando entramos elas ainda ficam se passando na gente, se esfregando. Já perdi as contas de quantas vezes isso já aconteceu comigo quando vou pra Carapicuíba."

Uma pesquisa feita essa semana revelou que 73% da população paulistana é favorável a criação dos vagões exclusivos em São Paulo. Não acredito que essas respostas sejam aleatórias e sim respostas de quem está cansada de ser violentada dentro dos transportes públicos.
Acho indispensável que o movimento feminista como um todo escute a voz das mulheres que utilizam os trens e o metrô em São Paulo. Acredito que uma mudança na sociedade e a destruição do patriarcado e do machismo só é possível principalmente se estivermos em unidade com as mulheres que sabem o quanto o capitalismo fere suas vidas todos os dias, e para isso companheiras, é necessário que cada uma de nós que somos vanguarda nas lutas comecemos a ouvir a voz das mulheres que mais sofrem com a opressão.

Sobre a culpabilização que nós mulheres continuaremos sofrendo por usar os vagões mistos devido a super lotação no exclusivo: companheiras, nada de novo! Continuaremos ouvindo que somos culpadas, que se estivéssemos no nosso vagão não estaríamos sendo assediadas e posso dizer o mesmo sobre as companheiras trans. Diante da culpabilização que continuaremos sofrendo, só há uma saída, e essa saída é a luta! A luta que já estamos acostumadas a bancar contra o machismo e contra o transporte caótico. A tarefa que é colocada pra nós feministas, negras e ativistas é de chegar nestas mulheres e trans e fortalecer a cada uma nessa luta! Não é fácil,  não é simples, mas com muita luta e com esforço de atingir a cada uma delas com nossos panfletos, nossas camisas, nossos atos, nossa luta, certamente as fortalecerão!

Sobre o apartheid: companheiras, não devemos usar de um termo como este e desconsiderar toda a carga histórica que ele carrega.
O Apartheid foi um regime que criminalizava, inferiorizava, animalizava os negros e assim limitava o espaço onde os negros e negras poderiam estar, assim como acontece hoje com o povo palestino que é massacrado por Israel.
Os vagões em momento nenhum criminalizam, inferiorizam, animalizam as mulheres, nem muito menos dizem que elas não podem utilizar os outros vagões.

Considero os vagões uma vitória muito significativa para as mulheres trabalhadoras e negras, ainda que com muitas limitações. Mesmo com tantas deficiências, para as trabalhadoras, para as negras periféricas fará toda a diferença do mundo algumas horas do dia sem assédio.
Precisamos acima de tudo ter plena consciência que o machismo, o racismo, a LGBTfombia, só serão destruídos com uma outra sociedade! Só serão destruídas com uma revolução e na minha opinião com o socialismo!
Precisamos continuar pressionando o governador Alckimin por mais investimento no transporte!
Queremos 2% do PIB para o transporte imediatamente! Queremos mais contratações no metrô, queremos mais vagões! Se somos 65% da população que usa o metrô, queremos um numero de vagões proporcional!
Continuaremos em campanhas contra o assédio, com alfinetes, com panfletos, com atos, com nossas bandeiras feministas e negras!

A luta continua, companheiras!
Em defesa das mulheres negras e trabalhadoras: EU QUERO O VAGÃO EXCLUSIVO SIM!





sábado, 5 de julho de 2014

Porque pra periferia nao basta queimar sutiã?

"A carne mais barata do mercado é a negra,A carne mais marcada pelo Estado é a negra"(Carta a mae África- Gog)

Eu sou uma menina de 20 anos, moro em São Paulo, mas cresci na periferia de São Luís do Maranhão. Nasci no bairro da Areinha, hoje dominado pelo tráfico, quando eu tinha 3 anos fui morar em uma ocupação que hoje é uma das maiores da America-Latina, se chama Cidade Olímpica, lá em morei em uma casa de pau a pique, um bairro muito muito pobre, morei lá com minha mãe e meu ex padrasto enquanto minha mãe estava grávida da minha irma do meio, que hoje tem 16 anos,
depois disso, meu pai pegou pra morar com ele, minha mãe, muito pobre, morando naquela situação não tinha a minima condição de criar, educar, sequer de vestir duas crianças, e optou por me deixar morar com o meu pai. 
Depois eu morei no bairro do Monte Castelo com meu pai, depois fomos morar na Macaúba e em seguida no bairro da Liberdade, convivi com mulheres negras da periferia durante toda a minha vida, convivo com elas até hoje e vejo como elas são fortes, mas acima de tudo, vejo que todas as mulheres negras que conheço são assim. Mas elas não são simplesmente fortes, cada uma delas precisaram aprender a ser assim. O machismo e o racismo, obrigam nós mulheres negras a fazer surgir forca.

A realidade das mulheres negras na periferia:
A situação das mulheres negras vai muito além do debate econômico como muitos movimentos feministas colocam. É muito difícil debater e colocar a questão da mulher negra, já cansei de ouvir: ''isso acontece com todas as mulheres, mas com as negras é pior'' Mas porque com as mulheres negras é pior?
As mulheres negras são as que mais abortam. Sim, somos as que mais abortamos. Mas porque nós abortamos? Existem mulheres que optam por abortar porque aquele não é o momento ideal para ter um filho e isso é um direito, o direito de decidir se eu quero ou não ter um filho;
Concordo que esse direito deve ser garantido para todas as mulheres e que seja um procedimento seguro, legal e gratuito. Mas nós mulheres negras queremos o direito não só ao aborto, mas também  de ter nossos filhos! Queremos o direito de ter nossos filhos! Queremos o direito e a garantia que eles não irão morrer morrer pela bala da polícia, que não vão morrer pelas drogas, que não vão morrer pelo genocídio. Queremos o direito de decidir ter nossos filhos. Na maioria das vezes, quando mulheres negras engravidam sequer conseguem ter seus filhos, e não é uma decisão que nós tomamos, mas que a realidade toma por nós, e nos sujeita aos piores métodos, aos piores traumas,  Essa realidade ainda é um forte retrato da escravidão, onde as negras matavam seus filhos para que não fossem escravos e nós quando fazemos isso, fazemos porque sabemos o que aguarda um pretinho ou uma pretinha na periferia.
As mulheres negras em sua maioria são as matriarcas, matriarcas e solteiras.
Sim, na minha família por parte de mãe por exemplo, as mulheres são todas solteiras.

Mas porque isso acontece? 
Talvez, você que tá lendo esse texto diga: mas não precisamos de homem! E de fato, não precisamos. Principalmente porque a soma do racismo com o machismo se transforma na pior e mais destruidora face da opressão. Mas o fato de nós, mulheres negras, estarmos sempre sozinhas é mais profundo.
Dos últimos dias pra cá tenho pensado em como as relações das mulheres negras se desenvolvem, e tenho principalmente observado as semelhanças das minhas relações anteriores e atuais. Relações na sua maioria invisíveis ou de super exposição e não atoa, mas sim porque em algumas relações somos super expostas como um troféu ou escondidas!
No ano passado eu tive um relacionamento, uma coisa que até hoje eu não sei o nome porque não era namoro, mas também era mais do que apenas uma ficada longa... Enfim, fotos no facebook, viagens, saídas com os amigos e etc, tudo o que namorados fazem, mas ele não era meu namorado... céus, que confusão! Uma grande confusão que precisava acabar porque me fazia sofrer!
Ele me dizia: "Não to pronto pra um relacionamento, não to pronto pra assumir nada agora". Até que um dia conversando com uma preta que morava comigo sobre toda aquela situação ela me disse: ''Laura, a carne mais barata do mercado é a carne negra! Um dia, ele vai estar com uma menina branca, classe média que nem ele e é com ela que ele vai querer namorar.'' Duro ouvir isso! Porém, mais duro do que ouvir, foi ver depois de três meses ele namorando com uma menina exatamente como a minha amiga havia me dito que seria.
Mas depois disso outras relações vieram. Vieram e me mostraram que ainda somos vistas como objetos.
Objetos podem ser escondidos ou super expostos, objetos não sentem nada.
Mas eu não sou um objeto!
Eu amo, eu quero ser amada! Eu posso amar e eu posso ser amada! E isso não faz de mim menos feminista.
O que é colocado ainda hoje para nós negras é: "não tem preta nas revistas de casamento, nem nas propagandas do dia dos namorados. Preta não casa, preta não namora, preta não sente nada por ninguém, não precisa disso e se sentir o problema é dela!"
Nós pretas da periferia precisamos de um feminismo que possa de fato atender nossas demandas, nossas lutas históricas. Precisamos de um feminismo que nos permita inclusive amar.
Para nós mulheres negras é difícil até ser feminista. A opressão histórica que todas as mulheres sofrem em nós tem um peso ainda maior. Queremos a liberdade sexual, queremos poder ter relações com outras pessoas e não sermos vistas como o pior dos seres na terra e defendemos isso junto com todo o movimento feminista. Mas para nós negras que já somos hiper sexualizadas, já somos vistas como as incansáveis e boas de cama, até fazer isso é mais desafiador, porque aí somos vistas como os animais, e literalmente como a carne mais barata.

Também temos heroínas! 
A luta das mulheres negras não começou hoje! Nós temos guerreiras, verdadeiras heroínas!
Dandara que foi uma das grandes lideres de Palmares e se suicidou para não voltar a ser escrava após a morte de Zumbi.
Preta Anastácia, que resistiu aos homens brancos que tentavam lhe abusar.
É necessário que as guerreiras negras também sejam lembradas!
Empoderamento pra quem?
Muito se fala sobre empoderamento das mulheres, mulheres empresárias, mulheres presidentes de empresas, mulheres no parlamento, ou uma presidente no país, no entanto, o que muda de fato na vida das mulheres negras com isso?
As vezes pode parecer que assumir grandes cargos nos faz vencer toda a ideologia  que é descarregada em nós durante toda a nossa vida, os espaços que nos são negados por exemplo, e então ter direito a voz, é sim muito importante, mas em que soluciona de fato na vida não só das negras, mas das mulheres como um todo?
Hoje vemos uma presidente no nosso país, e um numero muito superior de mulheres no parlamento e a frente de empresas que antes. Mas tudo isso se choca com a realidade quando o que acontece é:  o investimento para as mulheres é de 0,26 centavos, nossos Amarildos e Dg's continuam morrendo, a saúde das mulheres nas periferias é caótica. Continuamos morrendo, continuamos velando nossos companheiros, nossos filhos, continuamos sem creches, sem educação, continuamos nos piores locais de trabalho, continuamos sem saneamento básico, continuamos sendo violentadas só pelo fato de sermos mulheres, mas pior que isso é que quando se é preta tudo isso vem de forma triplicada.

É um grande desafio colocar isso dentro dos movimentos feministas hoje, que na maioria das vezes esquecem que mulheres negras tem especificidades.

O que quero dizer neste texto é que enquanto a questão das mulheres negras forem tratadas de maneira secundária não haverá avanço algum na luta contra o machismo e esse feminismo estará cada vez mais distante da libertação das mulheres. A luta da mulher negra ultrapassa e muito apenas um problema econômico, como é colocado hoje e é preciso entender e mudar isso.
A mulher branca só será completamente livre quando a mulher negra e trabalhadora for livre!
As mulheres só serão livres quando a classe trabalhadora for livre, quando homens e mulheres brancas e brancos, negras e negros forem livres!



sábado, 28 de junho de 2014

O meu black vai ficar solto!

''Mulher negra não se acostume com termo depreciativo, 
Não é melhor ter cabelo liso, nariz fino; 
Nossos traços faciais são como letras de um documento, 
Que mantém vivo o maior crime de todos os tempos; 
Fique de pé pelos que no mar foram jogados,
Pelos corpos que nos pelourinhos foram descarnados.
Não deixe que te façam pensar que o nosso papel na pátria
É atrair e gringo turista interpretando mulata;'' (Yzalú- Mulheres Negras)


De alguns meses pra cá tenho ouvido muito essa música. Acho que em alguma fase da vida, nós, mulheres pretas precisamos de uma música que trata de maneira tao profunda da nossa realidade e talvez mais da metade dela fale de tudo o que já aconteceu na minha vida e que acontece na vida da maioria das mulheres negras.
Sim, esse é o meu primeiro post e pode ser que ele fique um tanto quanto doloroso.

Desde pequena eu sempre percebi que existia algo de errado em como as pessoas me tratavam, ou tratavam minha mãe, meu pai ou qualquer outro preto que conhecesse e com o tempo eu ouvi que todos nós eramos iguais... Mas se eramos todos iguais, porque eu ouvia tanto que o meu cabelo era feio ou duro, ou que eu era feia?
Uma vez tomando banho de chuva com os amigos na rua, um deles me disse: no seu cabelo não entra água?Eu baixei a cabeça e dei um sorriso tentando disfarçar ou fingindo que aquela pergunta não tinha sido feita a mim.
O meu cabelo está longe de ser cacheado ou encaracolado. Ele é crespo! Crespinho crespinho! Agora eu uso ele solto, aprendi a fazer turbantes, ponho flores e um monte de outras coisas. Eu usava trancinhas e em Outubro do ano passado eu tirei, foi um desafio! Mesmo com todo mundo dizendo que ele estava lindo e tudo mais, eu custava acreditar ou mesmo achar que estava realmente bonito. De lá pra cá eu entendi que sim, meu cabelo é bonito, e mais que isso, usar meu cabelo crespo é um ato politico e sinal de resistência.
Mas especificamente hoje, o racismo veio mais uma vez. Ele veio e me disse que o meu cabelo não servia pra ir em um casamento de luxo em um castelo. Sim, hoje, em pleno jogo do Brasil eu ia no casamento da filha de uma amiga da minha mãe e ele ia ser em um castelo. Eu cancelei todo o meu dia, ia ver o jogo do Brasil no bar com os amigos e fiquei em casa pra ir nesse casamento. Eu estava quase pronta até que olhei pra todo mundo e me senti altamente inferior, me olhei no espelho, olhei pro meu cabelo e para os outros cabelos lisos ou alisados e desisti de ir ao casamento, porque não queria parecer menor que ninguém, não queria parecer a preta pobre do casamento cheio de rico.
Fiquei sozinha em casa e chorei o mesmo choro de quando eu era pequena, quando tudo o que eu queria era poder viver em paz, com o meu cabelo, minha cor e meus tracos, sem que ninguém me olhasse dizendo que exista algo mais belo ou ditando um padrão.
Hoje eu me perguntei, até quando o racismo vai vencer? Tentando fazer com que eu me sinta insuficiente pra um lugar muito luxuoso? E se eu tivesse ido nesse casamento? Eu iria ser vista como a menina do cabelo diferente? Talvez as pessoas me olhassem dizendo: porque não fez uma escova? Ou talvez me olhassem com aquele olhar: que cabelo diferente! Ou talvez eu só me tornasse a preta gostosa da festa. Nada muito longe do papel que é colocado pra uma preta.
O fato é que de uma maneira ou de outra eu não seria olhada como uma pessoa normal. Porque no dia a dia meu cabelo black parece algo anormal para a maioria das pessoas. Meu black parece curioso, exótico. Quantas e quantas vezes eu já ouvi: você é muito corajosa por usar seu cabelo assim! Talvez de fato eu seja muito corajosa mesmo. É preciso coragem para enfrentar isso tudo. É preciso ter coragem para sair de casa e soltar meu crespo, é preciso coragem pra enfrentar o racismo que me cerca assim que eu coloco o pé fora de casa.
Fiquei pensando: quantas mulheres pretas já deixaram de sair de casa porque estão simplesmente cansadas de serem coisificadas? Quantas prenderam seu black por achar que ele é feio solto? Que ele é seco? Quantas não voltaram a alisar porque se sentiam tao inferior quanto eu me senti hoje?
Meninas mulheres da pele preta, nossos cachos, crespos black são lindos!Não  deixem que te façam pensar que seu cabelo é inferior! Não deixem o racismo dizer isso a vocês! Não deixem que te tirem orgulho, não deixe que tentem te abater o bril! Os nossos fios são carregados de histórias de resistência! A cada volta que dá o cacho são lágrimas derramadas, cada centímetro dos nossos fios significam dias em que dizemos: racismo, cale a sua boca!  E mais que isso, quando soltamos o nosso black mostramos para os racistas que permanecemos aqui! Nossos fios incomodam o racismo! Nossos fios são a memoria de Dandara, Luiza Mahin, Odara, e tantas outras guerreiras negras que lutaram por nós!
Nossos tracos faciais são como letras de um documento que mantém vivo o maior crime de todos os tempos!

Saia! Solte seu cacho, solte seu crespo!