sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Quando se é uma criança negra - A importancia de enegrecer a infância.

 

 Menina pretinha
Você não é bonitinha 
Você é uma rainha! (MC Soffia- Menina Pretinha)

Nos últimos dias eu tenho feito mesas em algumas escolas. Saí do ambiente universitário e comecei a ter um contato mais forte com as crianças do ensino básico e médio.
Bem, tem sido uma experiência muito boa, incrível, para falar a verdade, mas olhem, falar sobre racismo com os pequenos é algo fácil e difícil, prazerosa mas também um tanto quanto delicada.
Tenho ido em escolas públicas de periferias, conversando com alunos de 10 a 16 anos e com os professores também. A cada dia tenho visto a necessidade de sair do âmbito universitário e estar mais próxima dos pretinhos e pretinhas pequenas.

Mas não é sobre isso que eu vim aqui escrever hoje. Quer dizer, é mais não é, porque quero escrever sobre minhas experiências nas escolas um outro dia.

Toquei neste assunto das escolas, porque vi muitos rostinhos pretos, de meninas pretas, muitos cabelos alisados visivelmente por conta do padrão de beleza imposto para todas as mulheres desde pequenas. Cabelo liso, escorrido, arrumado!
Que pese que alisar o cabelo não faz de nenhuma de nós menos negras ou militantes da luta contra o racismo, mas, que pese também que somos nós, as mulheres negras, a maioria das que aplicam produtos químicos nos cabelos ainda pequenas e que as razões pelas quais fazemos isso são as mais violentas.

Durante muito tempo eu alisei meu cabelo, alisei desde os 12 anos. Alisava porque assim enfim eu me sentia "aceita" e bonita.
Já falei aqui sobre todos os desafios que encontrei pelo caminho quando decidi por deixar que meu cabelo ficasse natural. O crespo que acho pelo e que tanto me orgulho de carregar na cabeça do seu jeito descabelado, vivo e lindo.

Minha familia é toda de militantes do movimento negro, então, fui criada sabendo que eu era negra, sabendo que o racismo existia, que ele era uma coisa muito muito muito ruim, cresci também sendo constantemente  sendo incentivada a fazer tranças afro nos cabelos. Isso me ajudou bastante na compreensão sobre o que é o racismo e também no que sou.
Crescer em meio a uma familia militante não me blindou de absover as idéias de que o liso, o branco, o europeu, eram mais bonitos.
Então, quando eu tinha 7 anos tudo o que eu mais queria era alisar meu cabelo, e esse pedido era feito constantemente ao meu pai, porque me sentia tão feia, tão inferior com todos aquele cabelo "ruim, duro, chuchu, que não molhava, que não entrava creme" como eu tanto ouvia e por isso, minha alto estima era baixissima, e ainda hoje as vozes que me chamavam não só disso, mas de magrela, nariguda, ecoam na minha cabeça fazendo com que eu me sinta a pior das mulheres.

Aos 12 anos então, enfim alisei o cabelo, e de imediato, quando eu cheguei na escola todos elogiavam o quanto meu cabelo estava bonito, até o menino pelo qual eu era apaixonadinha começou a dar mais importancia ao que eu falava e foi aí que pela primeira vez eu me senti realmente bonita.

E assim, eu segui até os 14 anos, quando um dia me olhei no espelho e não gostei do que vi e questionei pela primeira vez aqueles fios alisados, aí eu coloquei trancinhas. As tranças também me deixavam bonitinha, arrumadinha, escondiam os fios crespos. Mas depois de algum tempo, eu via as alisadas ao meu redor, e me via meio estranha com aqueles cabelos que nem eram meus. Voltei a alisar.
Dos 16 aos 18 anos eu mantive meu cabelo devidamente alisado na escova progressiva, até que comecei a militar, e voltei a colocar as tranças, só dois anos depois, deixei o black.

Mas todo esse processo de me negar mesmo sendo rodeada de pessoas que me amavam me incentivando a ser preta, me ensinando qual era o significado de deixar meus cabelos, de conhecer as guerreiras negras, eu não fui educada sem saber o que era o racismo. Eu sabia, eu viva ele, e isso doía, doía muito!
Doía, porque pela minha familia eu era amada do jeito que eu era, magrinha, narigudinha, descabelada. Mas para fora, para os amigos, parentes distantes, professores, amiguinhos de colegio, eu era estranha e assim eu me sentia uma coisa, e ninguém quer ser coisa, a gente quer ser gente! Essa foi a principal razão de eu me negar durante tanto tempo.

Nessas mesas que eu tenho feito pelas escolas das periferias de São Paulo, eu vejo muito de mim em todas aquelas menininhas alisadas, que só querem ser gente, que querem ser aceitas ou que como eu, querem se sentir bonitas, porque as vozes que as chamaram de feias seguem ecoando em suas cabeças e aquela dor volta e nos violenta de novo.

A diferença entre mim e essas meninas é que eu tive mulheres pretas e um pai que não conseguiram me blindar da soma do machismo e racismo, mas que plantaram algo que fez toda a diferença dentro de mim. Me ensinaram o que eu era e quanto eu era linda, independente do que me falassem. Meu pai me chamava de Pérola Negra, de pretinha, minha madrasta me dava livros de meninas pretas, de princesas negras, minha mãe me ensinava musicas africanas, me contava histórias da minha bisavó quilombola, Chica Salazar, mãe de santo do maior terreiro do Bom Jesus no Maranhão. Aquelas vozes que até hoje teimam em ecoar na minha cabeça hoje, tem menos força por conta das palavras de lindeza e amor que desarregaram em mim na minha infancia. Infelizmente, não sei se aquelas pretinhas também tem isso.

Vamos encher nossas crianças pretas de negritude, de orgulho da negritude, vamos plantar uma sementinha que certamente, assim como em mim germinou, germinará em nossos pequenos.
Eu não consigo abraçar todas as meninas pretas e dizer o quanto cada uma delas é linda e o quanto merecem ser felizes e livres.

O resultado de todos esses debates que tenho feito e que tenho tentado colocar dentro de cada palavra o que é o racismo, foi o desenho da Cinderela negra da aluna Thayná Silva, da EMEF Carolina Renô no Emi Boi Mirim e eu vou colocar esse desenho aqui, porque me deu muita certeza que um dia os cachos das meninas com quem eu consegui falar também serão livres e que agora, quem sabe, elas se sentem mais bonitas, mais princesas!