quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Porque levantamos nossas cabeças das senzalas?

As vezes é muito importante lembrar da nossa história, do nosso passado, de tudo o que vivemos até hoje. Fazer uma retrospectiva de tudo que já enfrentamos até hoje, principalmente quando estamos achando que tudo o que está acontecendo nas nossas vidas é tão ruim que se vir mais uma pancada não vamos conseguir segurar a onda nos faz por os pés no chão e dizer: acho que isso é moleza de passar perto de tudo que já passei.


Eu passei um bom tempo sem escrever pra cá né? Acho que preciso me justificar. Recebi muitos e-mails lindos e carinhosos super  apoiando a iniciativa do blog e dos textos. Isso foi motivo de muita alegria! Obrigada e me perdoem por ter demorado tanto para escrever. Eu fiquei sem internet e computador, e sinceramente, eu quero escrever aqui quando eu estiver sentindo o momento, quando eu estiver muito alegre, ou nem tão alegre assim e quando for um tema de muita polemica e ai eu ter a oportunidade de colocar meu ponto de vista. Não quero que se torne uma obrigação estar sempre escrevendo... acho que fica pouco sincero e quero escrever coisas de maneira que quando eu termine o texto me sinta mais fortalecida, e de maneira que quando vocês terminem de ler o texto também se sintam mais fortalecidas.


Hoje eu acho que é um bom dia pra escrever, porque ontem a noite eu fiz uma retrospectiva da minha vida e lembrei de muitas coisas que já me aconteceram. Eu estava um tanto quanto cabisbaixa de algumas semanas pra cá, aí lembrando de tudo que já passei nessa vida me senti muito forte e vi eu consigo passar por mais essa sim.


Mas eu lembrei principalmente de que tudo que eu já passei é a realidade que as mulheres negras passam ainda hoje.


Ontem eu lembrei do ano de 2006, que ano difícil foi aquele! Eu tinha 12 anos, tinha acabado de vir do Maranhão pra morar com minha mãe aqui em São Paulo. Nós morávamos no Cantinho do Céu, no extremo sul de São Paulo. Morávamos perto da represa... muito muito perto. Em uma casa que era tipo um cortiço, varias casas dentro da casa, sabe? E eram dois cômodos e um banheiro. Morávamos, eu, minhas duas irmãs menores, minha mãe e meu ex padrasto. E detalhe, esses dois cômodos eram no porão da casa. Como era fria aquela casa! E as paredes eram cheias mofo... eu e minhas irmãs sofremos até hoje cheias de problemas respiratórios, reflexo de tanta umidade que respiramos naquelas moradias precárias pelas quais passamos.

Em 2007 eu voltei para o Maranhão, voltei a morar com meu pai e minha madrasta. Em 2009 eu voltei pra São Paulo. Acho que de 2009 à 2011, foram os anos que me tornaram a mulher que sou hoje.
Em 2009 meu ex padrasto se separou da minha mãe. Ele foi embora para o Maranhão com e deixou meio quilo de arroz e dois rolos de papel higiênico, deixou uma mulher negra pagando a faculdade, recebendo 930 reais, com meninas pequenas em casa, aluguel, alimentação, água e luz...
Lembrei que durante uns dias do mês de agosto, só tínhamos feijão pra comer, feijão no almoço e feijão no jantar, sem arroz pra acompanhar, sabe?... E de café nós fazíamos bolinho de trigo, que era trigo, açúcar e água...
Um dia, antes de ir para a escola, eu coloquei o feijão no meu prato pra almoçar e coloquei só uma colher na boca, porque sinceramente, eu não aguentava mais comer aquilo todos os dias.
A comida da escola era tão ruim, tinha uma cara tão ruim, mas naquele dia eu fui para a escola e comi tão feliz aquela comida... lembro que naquele dia o lanche era macarrão com sardinha... que cara ruim que tinha aquela comida! Mas eu comi tão feliz!


E ontem eu lembrei disso conversando com alguns amigos durante uma atividade que fizemos aqui no Grajaú.
Foi impossível não pensar que essa realidade que na minha vida foi só durante um tempo, é a realidade da vida de tantas mulheres negras que tem 3 filhos e filhas nas periferias do Brasil.
Essas mulheres que sustentam suas famílias sozinhas, que só tem o feijão pra almoçar e bolo de trigo, açúcar e água durante toda suas vidas.
Quantas Lauras, Marlas e Mairas, dependem da alimentação escolar, por nas suas casas mesmo não tem nada pra comer. Aquela comida da escola que era pouquíssimo apetitosa é na maioria das vezes a alimentação do dia da juventude negra que está nas escolas.


Lembrei também que eram só três tias no refeitório, e essas tias, também negras, eram responsáveis por fazer alimentação pra quase mil alunos por período. Como fazer uma comida com boa aparência estando exausta depois de ter feito comida pra mais mil pessoas do período da manhã? Como não ficar cansada depois de ter feito comida pra o turno da manhã e tarde e ainda ter que fazer comida para o período da noite? São 3 mil pessoas pra alimentar todos os dias... São três mulheres negras responsáveis por fazer alimentação para essas 3 mil pessoas.
E o governo ainda diz que tem investido na educação... Salas de aula lotadas, 53 à 59 alunos por sala e apenas 1 professor. Três pessoas para cozinhar para três mil pessoas.


Essa é nossa realidade! Essa é a realidade das mulheres negras aqui do Grajaú, do Cocaia, do Cantinho do Céu, Jardim Eliana, Itaquera,  Pavão Pavãozinho no Rio, Cidade Olímpica no Maranhão, das periferias de Alagoas, da Bahia, de Recife... do Brasil inteiro.


Essa realidade que tenta nos brutalizar todos os dias, que brutaliza nossos filhos e filhas. Realidade que perdura desde a escravidão, que nos tira o alimento, que nos põe pra morar num porão com dois cômodos. Essa é a realidade de nós pretxs que dependemos da educação caótica, do governo que nos nega investimento na educação, essa realidade que nos violenta com 0,26 centavos por mulher.
Ainda diante de tudo isso, essa violência que sofremos nos dá tanta força pra lutar. Nos causa tanta indignação, que coisas pequenas do nosso cotidiano que podem abalar quem teve uma vida de dondoca não nos abala, para nos abalar precisa ser maior. O que nos abala é ver nossos filhos sem ter o que comer, o que nos abala é o salário de miséria,  são nossos filhos sendo mortos pela bala da policia.


Nós mulheres negras, somos nascidas e criadas, enraizadas na resistência! Levantamos nossas cabeças das senzalas que tentam nos impor e partimos para a luta como sempre levantamos e quando lembramos das nossas vidas, de tudo o que já passamos, a ideia de que estamos fracas sempre cairá por terra, e da nossa historia, das nossas marcas a força sempre brotará.