sábado, 5 de julho de 2014

Porque pra periferia nao basta queimar sutiã?

"A carne mais barata do mercado é a negra,A carne mais marcada pelo Estado é a negra"(Carta a mae África- Gog)

Eu sou uma menina de 20 anos, moro em São Paulo, mas cresci na periferia de São Luís do Maranhão. Nasci no bairro da Areinha, hoje dominado pelo tráfico, quando eu tinha 3 anos fui morar em uma ocupação que hoje é uma das maiores da America-Latina, se chama Cidade Olímpica, lá em morei em uma casa de pau a pique, um bairro muito muito pobre, morei lá com minha mãe e meu ex padrasto enquanto minha mãe estava grávida da minha irma do meio, que hoje tem 16 anos,
depois disso, meu pai pegou pra morar com ele, minha mãe, muito pobre, morando naquela situação não tinha a minima condição de criar, educar, sequer de vestir duas crianças, e optou por me deixar morar com o meu pai. 
Depois eu morei no bairro do Monte Castelo com meu pai, depois fomos morar na Macaúba e em seguida no bairro da Liberdade, convivi com mulheres negras da periferia durante toda a minha vida, convivo com elas até hoje e vejo como elas são fortes, mas acima de tudo, vejo que todas as mulheres negras que conheço são assim. Mas elas não são simplesmente fortes, cada uma delas precisaram aprender a ser assim. O machismo e o racismo, obrigam nós mulheres negras a fazer surgir forca.

A realidade das mulheres negras na periferia:
A situação das mulheres negras vai muito além do debate econômico como muitos movimentos feministas colocam. É muito difícil debater e colocar a questão da mulher negra, já cansei de ouvir: ''isso acontece com todas as mulheres, mas com as negras é pior'' Mas porque com as mulheres negras é pior?
As mulheres negras são as que mais abortam. Sim, somos as que mais abortamos. Mas porque nós abortamos? Existem mulheres que optam por abortar porque aquele não é o momento ideal para ter um filho e isso é um direito, o direito de decidir se eu quero ou não ter um filho;
Concordo que esse direito deve ser garantido para todas as mulheres e que seja um procedimento seguro, legal e gratuito. Mas nós mulheres negras queremos o direito não só ao aborto, mas também  de ter nossos filhos! Queremos o direito de ter nossos filhos! Queremos o direito e a garantia que eles não irão morrer morrer pela bala da polícia, que não vão morrer pelas drogas, que não vão morrer pelo genocídio. Queremos o direito de decidir ter nossos filhos. Na maioria das vezes, quando mulheres negras engravidam sequer conseguem ter seus filhos, e não é uma decisão que nós tomamos, mas que a realidade toma por nós, e nos sujeita aos piores métodos, aos piores traumas,  Essa realidade ainda é um forte retrato da escravidão, onde as negras matavam seus filhos para que não fossem escravos e nós quando fazemos isso, fazemos porque sabemos o que aguarda um pretinho ou uma pretinha na periferia.
As mulheres negras em sua maioria são as matriarcas, matriarcas e solteiras.
Sim, na minha família por parte de mãe por exemplo, as mulheres são todas solteiras.

Mas porque isso acontece? 
Talvez, você que tá lendo esse texto diga: mas não precisamos de homem! E de fato, não precisamos. Principalmente porque a soma do racismo com o machismo se transforma na pior e mais destruidora face da opressão. Mas o fato de nós, mulheres negras, estarmos sempre sozinhas é mais profundo.
Dos últimos dias pra cá tenho pensado em como as relações das mulheres negras se desenvolvem, e tenho principalmente observado as semelhanças das minhas relações anteriores e atuais. Relações na sua maioria invisíveis ou de super exposição e não atoa, mas sim porque em algumas relações somos super expostas como um troféu ou escondidas!
No ano passado eu tive um relacionamento, uma coisa que até hoje eu não sei o nome porque não era namoro, mas também era mais do que apenas uma ficada longa... Enfim, fotos no facebook, viagens, saídas com os amigos e etc, tudo o que namorados fazem, mas ele não era meu namorado... céus, que confusão! Uma grande confusão que precisava acabar porque me fazia sofrer!
Ele me dizia: "Não to pronto pra um relacionamento, não to pronto pra assumir nada agora". Até que um dia conversando com uma preta que morava comigo sobre toda aquela situação ela me disse: ''Laura, a carne mais barata do mercado é a carne negra! Um dia, ele vai estar com uma menina branca, classe média que nem ele e é com ela que ele vai querer namorar.'' Duro ouvir isso! Porém, mais duro do que ouvir, foi ver depois de três meses ele namorando com uma menina exatamente como a minha amiga havia me dito que seria.
Mas depois disso outras relações vieram. Vieram e me mostraram que ainda somos vistas como objetos.
Objetos podem ser escondidos ou super expostos, objetos não sentem nada.
Mas eu não sou um objeto!
Eu amo, eu quero ser amada! Eu posso amar e eu posso ser amada! E isso não faz de mim menos feminista.
O que é colocado ainda hoje para nós negras é: "não tem preta nas revistas de casamento, nem nas propagandas do dia dos namorados. Preta não casa, preta não namora, preta não sente nada por ninguém, não precisa disso e se sentir o problema é dela!"
Nós pretas da periferia precisamos de um feminismo que possa de fato atender nossas demandas, nossas lutas históricas. Precisamos de um feminismo que nos permita inclusive amar.
Para nós mulheres negras é difícil até ser feminista. A opressão histórica que todas as mulheres sofrem em nós tem um peso ainda maior. Queremos a liberdade sexual, queremos poder ter relações com outras pessoas e não sermos vistas como o pior dos seres na terra e defendemos isso junto com todo o movimento feminista. Mas para nós negras que já somos hiper sexualizadas, já somos vistas como as incansáveis e boas de cama, até fazer isso é mais desafiador, porque aí somos vistas como os animais, e literalmente como a carne mais barata.

Também temos heroínas! 
A luta das mulheres negras não começou hoje! Nós temos guerreiras, verdadeiras heroínas!
Dandara que foi uma das grandes lideres de Palmares e se suicidou para não voltar a ser escrava após a morte de Zumbi.
Preta Anastácia, que resistiu aos homens brancos que tentavam lhe abusar.
É necessário que as guerreiras negras também sejam lembradas!
Empoderamento pra quem?
Muito se fala sobre empoderamento das mulheres, mulheres empresárias, mulheres presidentes de empresas, mulheres no parlamento, ou uma presidente no país, no entanto, o que muda de fato na vida das mulheres negras com isso?
As vezes pode parecer que assumir grandes cargos nos faz vencer toda a ideologia  que é descarregada em nós durante toda a nossa vida, os espaços que nos são negados por exemplo, e então ter direito a voz, é sim muito importante, mas em que soluciona de fato na vida não só das negras, mas das mulheres como um todo?
Hoje vemos uma presidente no nosso país, e um numero muito superior de mulheres no parlamento e a frente de empresas que antes. Mas tudo isso se choca com a realidade quando o que acontece é:  o investimento para as mulheres é de 0,26 centavos, nossos Amarildos e Dg's continuam morrendo, a saúde das mulheres nas periferias é caótica. Continuamos morrendo, continuamos velando nossos companheiros, nossos filhos, continuamos sem creches, sem educação, continuamos nos piores locais de trabalho, continuamos sem saneamento básico, continuamos sendo violentadas só pelo fato de sermos mulheres, mas pior que isso é que quando se é preta tudo isso vem de forma triplicada.

É um grande desafio colocar isso dentro dos movimentos feministas hoje, que na maioria das vezes esquecem que mulheres negras tem especificidades.

O que quero dizer neste texto é que enquanto a questão das mulheres negras forem tratadas de maneira secundária não haverá avanço algum na luta contra o machismo e esse feminismo estará cada vez mais distante da libertação das mulheres. A luta da mulher negra ultrapassa e muito apenas um problema econômico, como é colocado hoje e é preciso entender e mudar isso.
A mulher branca só será completamente livre quando a mulher negra e trabalhadora for livre!
As mulheres só serão livres quando a classe trabalhadora for livre, quando homens e mulheres brancas e brancos, negras e negros forem livres!



Um comentário:

  1. Parabéns Laura! Seu texto é incrivelmente esclarecedor e direto. Obrigada por compartilhar conosco!

    ResponderExcluir